Edvaldo Pereira de Moura
Desembargador do TJ-Piauí. Mestre em Ciências Criminais pela PUC-RS. Membro da Academia Brasileira de Letras da Magistratura – ABLM. Vice-Presidente do IMB e Professor de Direito Penal e Processual Penal da UESPI.
Giovanni Boccaccio, escritor fiorentino, nascido na primeira década do século XIV, e falecido na Toscana, em 1375, aos 62 anos de idade, foi, com certeza, um marco de extrema importância na literatura mundial. É o pai do realismo da literatura universal. No seu tempo foi considerado a maior autoridade em conhecimentos da vida e da obra de Dante Alighieri. A obra universal com a qual a posteridade nos apresenta Dante foi por este denominada, simplesmente, de A Comédia. Depois de lê-la, Giovanni Boccaccio a renomeou de A Divina Comédia, título como qual aquele livro chegou até nós. Boccaccio escreveu diversas obras importantes, mas foi o Decamerão que o eternizou na história da literatura medieval.
Trata-se da coleção de cem novelas, todas escritas entre os anos de 1348 e 1353, considerada, por Torrieri Guimarães, na biografia que faz daquele autor, na edição publicada pela Editora Abril Cultural, em 1981, da qual me servi, um marco literário na ruptura entre a moral medieval, em que se valorizava o amor espiritual, e o início do realismo, iniciando o registro dos valores terrenos, que veio redundar no humanismo; nele não mais o divino, mas a natureza, dita o móvel da conduta do homem. Essa inversão custou muito caro ao juízo que ainda hoje se faz daquele autor.
O Decamerão ou Príncipe Galeoto, com efeito, sofreu, por muito tempo, o interdito nas bibliotecas das famílias cristãs, por tratar-se de leitura com o recomendável, apenas, para as mentes com uma boa estrutura fincada nos valores morais; valores como os explícitos de maneira luminosa e esplêndida, em O Livro dos Valore.
Todavia, o que nos fez destacar a importância daquela obra, escrita há mais de setecentos anos, não foi nada referente ao seu conteúdo, repleto de episódios cínicos e despudorados, mas que tanto penetram e expõem as fissuras das profundas camadas viscerais das idiossincrasias humanas, exibindo, como nervo exposto a crueza primitiva da nossa natureza, como jamais havia sido feita em uma obra literária anterior àquele milênio. Talvez, por isso mesmo, dela se tenham valido Voltaire, Molière, Martinho Lutero, Lessing, Jonathan Swift, Vivaldi, Lope de Vega, Tennyson e o próprio Shakespeare para escrever, inspirado no nono conto da terceira jornada, O Mercador de Veneza.
O que mais alenta as nossas breves e modestas considerações é a busca do momento histórico vivido por Boccaccio, na juventude dos seus 35 anos de idade, para escrever aquela obra, cuja narrativa se a na Idade Média, exatamente, em meados do século XIV, quando a Peste Negra espalhava seus tentáculos tenebrosos pela Europa, ceifando em quatro anos 75 milhões de vidas, sendo que somente em Florença e seus arredores a assombrosa pandemia levaria à morte mais de cem mil pessoas.
Stephen Spignesi, moderno escritor norte-americano, em sua obra, As 100 Maiores Catástrofes da História, assevera: "Por volta de dezembro de 1347, a Peste Negra havia iniciado seu ataque na Europa. Sua arma principal eram as pulgas. E o meio de transporte das pulgas, de região para região, de país para pais, era o onipresente rato. As pulgas escondiam-se nos pelos dos ratos e pulavam para o hóspede humano assim que tinham oportunidade. Portadoras da bactéria Yersinia pestis, causadora de três tipos de praga que, combinadas, provocaram e devastação conhecida como Peste Negra. As três formas dessa praga, por ordem de gravidade, eram as pestes bubônica, pneumônica e septicêmica. As três atacavam o sistema linfático, causando aumento das glândulas, febres elevadas, dores de cabeça, vômitos e fortes dores nas articulações. A peste pneumônica também causava os de tosse, seguidos de expectoração de escarro e sangue. A peste septicêmica fazia com que a pele adquirisse uma coloração púrpura à medida que todos os órgãos do corpo entravam em hemorragia. A morte ocorria rapidamente em todos os casos. A Peste Negra foi, e ainda é responsável por uma das mais horríveis de todas as mortes”.
Dois dias eram o tempo suficiente para exterminar toda uma família e cinco dias eram o quanto, no máximo, uma aldeia inteira conseguia resistir. Veio do próprio Boccaccio o mais espantoso relato testemunhal daqueles momentos: "Quantos homens valentes, quantas senhoras virtuosas não tomavam o café da manhã com seus familiares e a ceia com seus ancestrais na outra vida. As condições das pessoas eram deploráveis de se ver. Elas adoeciam aos milhares, diariamente, e morriam abandonadas e sem assistência. Muitos morriam pelas ruas, outros morriam em suas casas - fato que era percebido apenas pelo cheiro desagradável de seus corpos apodrecendo. Os campos santos das igrejas eram insuficientes para o enterro da imensa quantidade de corpos, que eram amontoados às centenas em enormes valas, como mercadorias no compartimento de um navio, e cobertas com uma fina camada de terra.'
Naqueles dias, maior que o flagelo fisico que trucidava, deformava e matava velhos, adultos e crianças, pobres ou ricos, foi a crise moral e espiritual que avassalou a mente das vítimas e a das demais pessoas, parentes, amigos, conhecidos ou não. Boccaccio não poupa minúcias quanto ao dantesco quadro de aflição daquela época. Além de detalhar as facetas etiológicas da terrível doença, descreve a angústia existencial de todos - mestre da mente e da alma do seu povo que era -, diante da perspectiva da morte, quando prosperava a ineficácia da religião católica e dos conhecimentos médicos da épоса.
No meio daquele vale de lágrimas, Boccaccio notou, por exemplo, dois tipos de conduta e menoscabo de qualquer valor preestabelecido para a época: primeiro, as pessoas avam a beber e a entregar-se, desenfreadamente, aos prazeres da luxúria; segundo, outras se recolhiam, fechadas em grupos, orando e praticando o ascetismo, além de tantas que agiam daquelas duas maneiras, adotando, assim, condutas intermediárias. Levas e levas de pessoas, sem destino, vagavam pelos campos ou reunindo-se em igrejas.
As cem novelas que compõem o Decamerão se am numa casa de campo, onde sete moças e três rapazes, encontram-se isolados do mundo, fugindo da peste, tendo para cada dia um grupo para proceder a relatos orais. Foi o único meio que eles encontraram para não sucumbirem à loucura e à solidão, e não se deixarem infestar pela peste cruel e avassaladora, que caía sobre a população florentina, como nuvens negras, numa eterna noite de tempestade.
Esta longa viagem pelos dias sombrios da Idade Média, feita pelo interior da obra de Giovanni Boccaccio, tem a eficácia de construir uma complexa alegoria relativa ao nosso tempo alegoria essa, que pretendemos, aqui, aliar a um superficial exame de sua valiosa obra. Estamos certos que sim, pois nunca deixaremos de ser o homem de ontem, de hoje e de amanhã, pela carga ontológica que nos nivela, como semelhantes nos destinos da vida e da morte, desde a criação da nossa espécie.
A história tem nos ensinado, que nenhum anteado nosso viveu sem dores, tristezas e sofrimentos, não como uma maldição que tenha de acompanhar a nossa lida em nossa agem por este mundo, mas como cadinho, como forja, como campo de batalha da existência, onde cada um, diante de suas provações, possa construir a sua têmpera, modelar o seu caráter, aperfeiçoar o seu espirito. Até certo ponto, os estoicos tinham soberbas razões para encarar a vida. É que a dor, o sofrimento, a perplexidade, os incômodos do nosso corpo, da nossa mente e do nosso espirito, mais facilmente nos forçam a escolher os melhores caminhos para o nosso aperfeiçoamento, para a nossa felicidade.
Quem de nós recolhe-se, hoje, ao leito, depois de um dia de trabalho, sem as angústias e as preocupações pandêmicas introjetadas em nosso espírito, pelo convívio com a esperteza, а injustiça, a falsidade, a hipocrisia e a crueldade ocultada ou explicitada, que se colam em nossos semelhantes e conviventes como um câncer incurável, como as manchas púrpuras e os bubões da Peste Negra do mundo atual, que nos cerca? Nenhum de nós escapa à ameaça da peste negra da imoralidade, da corrupção sistemática, da indecência e da criminalidade, do terrorismo, renitentes e cruéis, que apodrecem o mundo!
Pois em momentos, assim, é que deve estar ao nosso alcance, como guia, como orientação, como remédio e como alimento do espirito malferido e entediado, O Livro dos Valores, do Desembargador Federal Francisco Meton, relicário de copiosa sabedoria, um abrangente tratado dos valores da vida e, certamente, um guia seguro e límpido da escolha desses valores, em boa hora trazido à luz em nosso meio, quando descem sobre a nossa sociedade as nuvens espessas e tenebrosas da imoralidade, das incertezas, da subversão das conquistas diamantinas do espirito, do predomínio nefasto da dialética erística dos embusteiros e negacionistas de bens e valores legítimos, da inversão interesseira dos cânones jurídicos, políticos, religiosos e sociais em proveitos mesquinhos e criminosos.
Li e saboreei os ensinamentos contidos em O Livro dos Valores, no qual, de maneira didática, cristalina e elegante, vamos reencontrar as mais belas e exemplificadas lições sobre os verdadeiros valores da vida e a mais profunda análise da vida dos valores. É uma gostosa revisita aos melhores tratados de Filosofia. É uma clara revisita às lições dos eternos mestres da Ética.
Que o Padre Tony Batista, autor da mais bela e profunda análise de O Livro dos Valores, me dê a sua absolvição, mas as lições sábias e comoventes do Doutor Francisco Meton me fizeram lembrar a doçura severa do Rei dos Reis e Mestre dos Mestres, no Sermão da Montanha. Os ensinamentos de O Livro dos Valores protagonizam as pregações protocristãs de um Sermão da Montanha dos tempos modernos.
Encantam-nos todos os 17 capítulos dessa obra, mas foi no capítulo 11 que efetuei a minha comunhão de fé. O Direito de Valor e os Valores do Direito me resumem os melhores tratados sobre as questões do Direito, aqui explicitadas por um dos nossos mais dignos e conspícuos mestres, que é o autor desse livro.
Concluo minhas modestas considerações, com um os parágrafos do prefácio escrito pelo Padre Tony Batista; prefácio, aliás, para mim, um dos mais competentes e profundos ensaios acadêmicos sobre o assunto.
"No que tange aos valores, os últimos séculos foram de uma fecundidade exuberante para o Ocidente. Descobrimos a liberdade pessoal contra a tirania dos reis, a dignidade de todo ser humano contra as formas históricas de preconceito e intolerância; rejeitamos os absolutismos e nos arriscamos na democracia, descobrimos o valor da liberdade de imprensa, instauramos os direitos políticos e encontramos o lugar da Lei na criação de um Estado igualitário e justo. Ninguém duvida que a história do Ocidente tenha sido uma constante luta pelo reconhecimento e institucionalização de direitos e valores, o que proporcionou um desenvolvimento moral de nossa civilização. Mas, ninguém duvida também que nossa história é permeada de opções contra nossos próprios valores, precisamos dar os significativos na concretização deles”.
*** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do GP1